Quarta-feira, 9 de Fevereiro de 2011

BOURBON

 

Acordava uma vez mais,  de novo, para um novo dia, era o dia quinze mil seiscentos e quarenta e cinco se a memória não lhe falhava, contava assim o tempo de vida, o existido e a projecção do por existir, apenas um calendário diferente na soma do tempo, ou talvez melhor dizendo, na perda dele. Bem o sabia, cada dia acumulado, seria um dia a menos para existir, mas não se pode querer tudo, e de qualquer modo, devia acabar por ser justo.
Num ritual sempre igual, olhos abertos focando lentamente o tecto do quarto tentava reconhecer as manchas de humidade junto da janela assim como a pouca mobília do quarto, uma secretária daquelas que se fecham como uma persiana que desliza numa curvatura até à base em madeira escura, uma cadeira acompanhando estilisticamente a secretária com um assento em couro vermelho e um guarda fatos em tudo igual ao já descrito com três portas e um espelho de corpo inteiro no meio.
Como sempre, de há muito tempo, num primeiro instante nunca se lembrava onde estava, nos quinze mil seiscentos e quarenta e cinco dias já acordados, muitos foram os lugares onde despertara, muitas foram as camas onde se horizontalizara, só ou acompanhado, em vários meridianos e paralelos diferentes.
Soerguido o seu ainda jovem corpo, sentado na cama na posição de lótus, como sempre incendiava o seu primeiro cigarro “Camel”, cuja incandescência reflectia no espelho do guarda-fatos defronte à cama a sua primeira imagem do dia. E lá se lembrava de onde estava, aquele não era o seu lugar, a sua casa habitual, um olhar para o  lado direito da cama, quase o faz engolir o cigarro de surpresa, ao ver o corpo daquela mulher ali deitado ainda a dormir, não se lembrando sequer de como ambos os corpos ali foram parar. Levantou-se, agora num salto e abriu a janela que dava para uma movimentada rua da cidade do Porto, agora deserta por ser domingo. Do seu lado direito podia ver as traseiras do edifício da câmara municipal . Com a janela ainda aberta, olhou de novo para aquele ser a dormir. A sua roupa não espalhada, como se espalham em actos de êxtase incontidos de incontrolável desejo e paixão, mas bem dobrada, o casaco pendurado numa cruzeta, e olhando o espelho de novo, constatava que continuava com as calças vestidas. O peso e dor na cabeça, assim com um hálito forte a bourbon ressacado provavam o excesso cometido. Já vestido e caminhando sozinho por aquela fria manhã de domingo na cidade  , apesar de verão. Golas levantadas e mãos nos bolsos, apenas se recorda de ter entrado naquele bar, na zona antiga da cidade, fugindo de uma multidão folionicamente enlouquecida com martelos de plástico grilantes a martelar a torto e a direito, onde umas colunas de som debitavam um ""Round Midnight" pelo sax de Dexter Gordon, um balcão imenso onde um barman limpava copos e no canto do balcão, uma mulher,  aquela  que dormira a seu lado e o momento em que, com um gesto de mão,  reconhecido por quem pelo mundo fora frequenta bares, segurando um copo de bourbon, lhe fez um brinde...
 
música: Dexter Gordon, Round Midnight
publicado por Jorge Santos às 17:10
link | comentar | favorito

. Jorge Santos

. 16 seguidores

.Março 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
20
21
22
23
24
25
26
28
29
30
31

.arquivos

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Novembro 2010

. Setembro 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

.posts recentes

. OS OLHOS DE MINHA MÃE

. AO MEU PAI

. BOURBON

. IDA SEM VOLTA

. NÃO FUI EU!

. O TAMANHO DA CAMISOLA

. JOSÉ SARAMAGO

. A PROPÓSITO DO MUNDIAL DE...

. MENTIRAS...

. ABRIL

. URGÊNCIA

. O PERIGO DA HISTÓRIA ÚNIC...

. AGRESSÕES ESCOLARES

. LIBERDADE DE IMPRENSA

. BAILINHO DA MADEIRA

. NO PEITO

. CHAVELA VARGAS

. LIBERDADE

. O SENHOR DAS ÁGUAS

. DEZ DE JUNHO

. DE ANIMO LEVE

. ANTHONY AND THE JHONSONS

. OS DARWINIANOS

. A BOLHA

. AVAREZA

. A IRMÃ DO MEU FILHO

. A PARTILHA DE UM MOMENTO

. ...

. FILHO DE PAI SEPARADOS

. WARNING

. 2009

. TIME AFTER TIME

. SOMOS LIVRES

. MINHA CONSCIÊNCIA

. PARABÉNS FILHO!

. SER

. DESAMOR

. A MAIOR EMPRESA DO MUNDO

. FINALMENTE

. MEU CREDO

. ...

. OS AMIGOS

. VIDA

. VIAGEM

. AMOR

. CIDADANIA 2

. GOSTO DOS MEUS ERROS

. DA VIOLÊNCIA

. AC/DC

. SALA DE ESPERA 2

.Tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds