Acordava uma vez mais, de novo, para um novo dia, era o dia quinze mil seiscentos e quarenta e cinco se a memória não lhe falhava, contava assim o tempo de vida, o existido e a projecção do por existir, apenas um calendário diferente na soma do tempo, ou talvez melhor dizendo, na perda dele. Bem o sabia, cada dia acumulado, seria um dia a menos para existir, mas não se pode querer tudo, e de qualquer modo, devia acabar por ser justo.
Num ritual sempre igual, olhos abertos focando lentamente o tecto do quarto tentava reconhecer as manchas de humidade junto da janela assim como a pouca mobília do quarto, uma secretária daquelas que se fecham como uma persiana que desliza numa curvatura até à base em madeira escura, uma cadeira acompanhando estilisticamente a secretária com um assento em couro vermelho e um guarda fatos em tudo igual ao já descrito com três portas e um espelho de corpo inteiro no meio.
Como sempre, de há muito tempo, num primeiro instante nunca se lembrava onde estava, nos quinze mil seiscentos e quarenta e cinco dias já acordados, muitos foram os lugares onde despertara, muitas foram as camas onde se horizontalizara, só ou acompanhado, em vários meridianos e paralelos diferentes.
Soerguido o seu ainda jovem corpo, sentado na cama na posição de lótus, como sempre incendiava o seu primeiro cigarro “Camel”, cuja incandescência reflectia no espelho do guarda-fatos defronte à cama a sua primeira imagem do dia. E lá se lembrava de onde estava, aquele não era o seu lugar, a sua casa habitual, um olhar para o lado direito da cama, quase o faz engolir o cigarro de surpresa, ao ver o corpo daquela mulher ali deitado ainda a dormir, não se lembrando sequer de como ambos os corpos ali foram parar. Levantou-se, agora num salto e abriu a janela que dava para uma movimentada rua da cidade do Porto, agora deserta por ser domingo. Do seu lado direito podia ver as traseiras do edifício da câmara municipal . Com a janela ainda aberta, olhou de novo para aquele ser a dormir. A sua roupa não espalhada, como se espalham em actos de êxtase incontidos de incontrolável desejo e paixão, mas bem dobrada, o casaco pendurado numa cruzeta, e olhando o espelho de novo, constatava que continuava com as calças vestidas. O peso e dor na cabeça, assim com um hálito forte a bourbon ressacado provavam o excesso cometido. Já vestido e caminhando sozinho por aquela fria manhã de domingo na cidade , apesar de verão. Golas levantadas e mãos nos bolsos, apenas se recorda de ter entrado naquele bar, na zona antiga da cidade, fugindo de uma multidão folionicamente enlouquecida com martelos de plástico grilantes a martelar a torto e a direito, onde umas colunas de som debitavam um ""Round Midnight" pelo sax de Dexter Gordon, um balcão imenso onde um barman limpava copos e no canto do balcão, uma mulher, aquela que dormira a seu lado e o momento em que, com um gesto de mão, reconhecido por quem pelo mundo fora frequenta bares, segurando um copo de bourbon, lhe fez um brinde...