Quarta-feira, 20 de Fevereiro de 2008

MEU PAI

                                                                                

QUE ACONTECE A QUEM NÃO SOUBER DANÇAR O MERENGUE 
 
-Você já sabe as últimas?
-Quais últimas ?
-Parece que houve uma grande operação militar no Leste. É claro que nunca se sabe, ao certo, o que se passa, mas dizem que foi uma coisa em grande: muitos feridos e mortos de parte a parte.
 
Mortos e feridos, de lado a lado e, lado a lado, a verdade e o boato...até quando ?
 
-O Marcelo é que não pode. Se ele pudesse, já tinha concedido a autodeterminação , pelo menos.
-Concedia o quê?! Não faz outra coisa senão fazer comerciais, de si-mesmo , com os seus "serões em família" na Tv. ., pretendendo nos ensinar a fazer palavras cruzadas, tendo como dicionário a Constituição.
 
Era uma alusão ao sucessor de Salazar que, ao contrário daquele, não conseguiu manter o poder centralizado nas suas mãos. Dependia, essencialmente, do partido do Governo , do qual se fizera presidente o próprio Presidente da Republica, sempre rodeado pelos velhos conservadores da ditadura salazarista.
 
Por causa desse enfraquecimento, Marcelo Caetano mantinha um programa na televisão com o objectivo de demonstrar que estava de mãos amarradas e que nada podia fazer.
 
Por outro lado, a Constituição de 1933, considerava as colónias como "Províncias Ultramarinas" as quais era partes indivisíveis, e não alienáveis de de Portugal. Daí, a impossibilidade constitucional de qualquer negociação, visando a concessão da independência.
 
-Não digo que ele seja um progressista ou mesmo um liberal! Mas que ele já demonstrou ter desejos de dar ao Povo uma maior abertura, isso já!
 
-A qual Povo ? Ao de lá ou ao de cá? Aí é que está o problema. Ele é tão bom quanto o outro que morreu!
 
De copo na mão, escutava, em minha casa, aquela discussão entre um grupo de convidados. Estávamos em Março de 1971, era Aniversário de minha filha, era dia de Festa, e como odiava aquelas conversas que me irritavam e inquietavam
 
Vocês desculpem, mas vamos animar a "farra" e acabar com esse "papo" que só tristeza nos dá ?-sugeri com um ar de quem não está mais disposto a escutar tal assunto.
 
Certo. Saia um merengue que isto anima já.
 
Pús o merengue no toca-disco e o efeito foi electrizante: toda a gente começou a dançar , em circulo, formando uma clareira convidativa da umbigada. De repente, ouviu-se uma voz, logo secundada por muitas mais:
 
-Manuela ao meio! Manuela ao meio!
 
E a Manuela foi. Toda ela era ritmo e sentido musical. As mãos, em movimentos e gestos redundantes, convidavam, à vez, o par masculino a que o corpo, nos seus requebros e ginga, se esquivava para, depois, se entregar numa umbigada cheia de sensualidade, cheia de provocação.
 
Chegou, por fim, a minha vez. Fui e tentei fazer o meu melhor, mas não consegui mais do que ser fintado, várias vezes, acabando por perder o ritmo e tentar a umbigada fora do tempo.
 
Todo o mundo riu do meu descontrole e rindo, Manuela me castigou:
 
-Vai "mano", vai mas é dançar o vira. Merengue não é para toda a gente! Bem se vê que Você não é de cá!  
 
UM EUROPEU AFRICANO E AFRICANOS EUROPEUS
 
Novembro de 1974. Tinha chegado a Londres, por conta da Shell , para frequentar um curso profissionalizante e ali estava eu, cheio de contentamento, no hotel, aguardando que me confirmassem a reserva feita com larga antecedência.
 
-Qual é mesmo a sua procedência, "Mister" Santos?
-Angola, África .
África ?
-Sim, África . Existe algum problema?-perguntei receoso de que não houvesse nenhuma reserva.
 
-Não, está tudo em ordem; é que esperávamos ver chegar uma pessoa de côr negra. Me desculpe, Senhor!
 
Depois de me ter instalado, saí, sob uma chuva miudinha, para relembrar aquela cidade que, anos antes, tanto me tinha agradado. E encontrei, de novo, um povo heterogêneo em côr e raças.
 
Mais tarde, tive a oportunidade de travar conhecimento com um individuo de côr negra. Quando me apresentei, fi-lo com toda a naturalidade, dizendo que era africano de Angola -uma pequenina mentira que sentia prazer em dizer, pois, eu não era africano mas sim africanista. Por sua vez, o meu novo conhecimento, depois de rir um pouco, confessou que era africano, nascido em Londres!
 
Daí em diante, comecei a admitir o princípio de que, com toda a certeza, a maior parte daqueles indivíduos, de raça não europeia, teria nascido na Inglaterra ou, pelo menos, já se considerava inglesa.
 
E como chamar a essa situação, a esse aumento crescente de povos afro-asiáticos nos países Europeus ? Creio que nunca ninguém pensou em chamar-lhes " colonos", pelo menos àqueles proprietários de restaurantes ou de minimercados, que de extracto social explorado, nada têm. "Colono" foi palavra inventada para "branco", mesmo que na colônia seja tão explorado quanto os naturais da terra.
 
Interrompendo estas cogitações, comprei o jornal e fiquei logo angustiado por ler, na primeira página, que tinha havido forte tiroteio em Luanda, no fim de semana, havendo mortos e feridos mão confirmados. Apressei-me a regressar ao hotel, com um mêdo estranho, dentro de mim, como se aquele ataque estivesse para vir na minha direção. Quando lá cheguei, um dos convivas interrogou-me:
 
-Já leu as últimas notícias sobre os acontecimentos na sua Terra ?
-Onde, em Portugal?-perguntei mais angustiado, ainda!
-Nào, em Angola. o Senhor não é angolano ?
-Desculpe, mas estou nervoso: tem razão, sou angolano 
 
A DUVIDA
 
Entretanto, ocorrera o golpe de estado em Portugal e deixara de vigorar a Constituição de 1933, o que iria permitir a negociacão da independência das tais Provincias Ultramarinas , e a negociação, para Angola, ocorreu na reunião do Governo com os liders dos Movimentos Terroristas, agora chamados "nacionalistas": A Cimeira do Algarve".
 
Um dia. ligando o rádio, ainda fui a tempo de ouvir parte do que tinha ficado a constar no Acôrdo do Alvôr quanto à definicão de angolano:"...e todos aqueles que, estando radicados em Angola, optem pela nacionalidade Angolana.
 
Mas. alguns dias antes, lera que terminara o prazo para o recenseamento dos portugueses " ultramarinos" para efeitos da eleição da " Constituinte", em Portugal, e que todos aqueles, que não se tivessem recenseado, seriam considerados como tendo optado pela nacionalidade Angolana.
 
Ora, eu não me recenseei e, portanto e em princípio, já deixei de ser, em direitos políticos, cidadão Portuguêws, sem que tenha ainda chegado a altura de poder dizer:Sou Angolano.
 
Faltava um ano para a independência e ia começar a guerra civil.
 
Disse para mim: No final, passei vinte anos com dupla nacionalidade, com duas "terras", para chegar ao ponto de duvidar se terei "terra" alguma! 
 
O ADEUS
 
A pouco e pouco, a cidade foi ficando despovoada: todos os dias, mais alguém que partia. E nas ruas, as forças militarizadas, dos movimentos nacionalistas, encobriam toda a alegria daquela cidade linda, de acácias "rubras como beijos de amor"
 
Durante a noite, o refúgio dentro de casa e um sono impossivel de conciliar com o explodir das granadas e o cantar incessante das metralhadoras. Iniciava-se o dia cheios de angústia, de incerteza quanto ao desenrolar de mais uma jornada em que, por sua vez, a angústia aumentava com a expectativa de mais uma noite de guerra.
 
Agora, não era mais o terrorismo, mas a guerra civil: não contra nós, mas contra eles mesmos.
 
" Ai Luanda, meu berço de encantar, com palmeiras sobre o mar!" -
 
Como em tão curto tempo parecia ficar distante esse outro tempo em que o poeta cantava:
Tens tudo,
pregões e cantigas,
tens choros e brigas,
e o luar!
Batucadas nas noites
perdidas,
a beijar-te com fúria
e carinho,
tens o mar!...
 
Igualzinho a nóss os dois,
meu Senhor,
tal e qual o amor!...
 
Agora, nada mais és do que ódio, desespêro e mêdo
 
E o dia, com hora marcada, chegou. Olhei, demoradamente, os móveis da casa, como se fôssem seres humanos, num adeus -para sempre !?, com as lágrimas teimosamente rolando pelo rosto. Fechei a porta de casa: um epílogo de uma pequena história de 20 anos, com um final não previsto.
 
Nas mãos carregava uma pequena valise; no bolso, a passagem de volta. Para onde? Para a minha terra: Portugal
 
 
TRISTEZA
 
 
Depois do alivio e da alegria da chegada, a tristeza duma realidade. Onde estava o meu Portugal alegre e gentil, garrido e acolhedor?
 
Vivia-se, ainda, a euforia da Revolução, euforia que ocasionava instabilidade política e dava novos valores à sociedade, numa rejeição, total, pelos valores tradicionais. Mas, se nessa euforia as coisas corriam mal, a culpa era sempre dos " ultramarinos".
 
Recebemos uma classificacão e, com ela, uma segregação: éramos os "retornados", uma espécie de casta não desejada e que representava uma ameaça para a crise de desemprêgo que se agravava.
 
Quanta riqueza que os trabalhadores brancos, êsses retornados, tinham permitido que os investidores metropolitanos tivessem arrecadado, ao longo dos anos de colonizacão, para, no final, ninguém ter a iniciativa de um gesto de solidariedade.
 
Os galpões do aeroporto estavam todos lotados com "retornados",que não tinham para onde ir e que ali viviam, em condições precaríssimas, à espera de qualquer solução que melhorasse tão desesperada situacão.
 
No porto de Lisboa, quilómetros e quilómetros de áreas cheias de malas, caixotes e atados, à espera de dono, e cheias de donos que ali iam, dia após dia, à espera de sua bagagen!
 
E, por toda a parte, de norte a sul, a mesma sensação de mal estar. Era como se toda a gente nos olhasse e dissesse: " E, agora, que quer Você? Quem o mandou ir para lá? Bem feito! Roubou o negro, agora tem o castigo! E não pense que vem roubar o pão dos de cá!"
 
"Retornado" era de "lá", não mais de cá". E eu senti que não tinha retornado a lado nenhum: estava, ainda, em trânsito, no meu regresso, em busca da "minha terra" 
 
TERMINO DE UMA VIAGEM(?)
 
E a moeda foi jogada ao ar: cara ou coroa ? Era uma moeda antiga, do tempo de D.João, e não tinha coroa, mas tinha, gravada em relêvo, a Cruz de Cristo, simbolo lusitano nas caravelas de Cabral; e do outro lado, a célebre frase que apareceu, no céu, a Carlos Magno, na véspera da batalha que venceu: ïn hoc signo vinces"-por este sinal vencerás.
 
Então era isso: a rota de Cabral. Aliás, o BRASIL fica mesmo em frente"-dizia, em Luanda, um "outdoor" da Varig.
 
E ficava, ficava em frente e mesmo muito pertinho. Pertinho pelos laços históricos, pertinho pela língua comum; pertinho pelo clima; pertinho pelo calor e comunicabilidade humana.
 
E vim. E durante o vôo alguém me avisou:
 
-Cuidado quando Você descer no Galeão...
-Porquê-indaguei surpreso e apreensivo.
-É que, antigamente, carioca ia ao Galeão para ver avião; agora está indo para ver a côr do Português quando foge.
 
Foi o meu batismo na piada do "português. Mas, afinal, eu era igualzinho a eles na côr e, a comer farofa, logo no primeiro dia:
 
-O Senhor é Portugês-perguntou o garçon.
-Sou, porquê?
-É que o Senhor gosta mais de farofa do que o carioca!!!
 
Mas gostoso, foi no banco, na hora de trocar o meu dinheiro:
 
-Você não quer abrir uma conta?-perguntou a funcionária sorridente.
-Não, não quero.
-Então Você vai gastar, já, esse dinheiro todo?
-Talvez-disse brincando e acrescentei:-não vim para ficar; vim só para ver...
-Você não veio ver, não e você vai ficar. Quando olhar bem para as cariocas...eu vou-te contar...
 
Eu vou-te contar, minha irmã brasileira: eu olhei para cariocas; eu olhei para paulistas; eu fui sempre olhando, pela rodovia, desde o Rio até Belém; eu continuei olhando em Manaus e sabe?,Não vi nada diferente: era como se estivesse em "casa" com alguém me sussurrando no ouvido: Fica, tua "terra" é esta.
 
E FIQUEI.MINHA VIAGEM DE PORTUGAL PARA O BRASIL, COM UMA PEQUENA PARADA EM ANGOLA, TINHA CHEGADO AO FIM. 
 

 

música: Frank Sinatra-My way
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publicado por Jorge Santos às 00:00
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De daplanicie a 22 de Fevereiro de 2008
Tenho vindo a acompanhar tudo o que tem escrito nos últimos dias sobre o seu pai e digo-lhe que estou encantada. O seu pai foi sem dúvida um Homem extraordinário! Pena que sejam sempre essas pessoas a partir primeiro e a deixar-nos apenas as suas memórias e uma profunda saudade.
Cumprimentos
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